sábado, 6 de junho de 2015

Notícia de outrora

O texto relata a ida do primeiro automóvel ao Cadafaz, que aconteceu em 1938.
Foi um dia marcante, de delírio e festa para as gentes do Cadafaz dessa altura.
Leiam com atenção a epopeia que viveram nessa altura, de certeza que irão gostar.


UMA VIAGEM ARRISCADA


Ida e volta ao Cadafaz, de automóvel, por terras nunca dantes "navegadas",… - O relatório da jornada - que foi feita sem seguro de vida!



Lisboa, 28 – Desde que haja estradas em condições, um automóvel vai a todo o lado. Basta para isso que tenha rodas para andar, gasolina no motor, óleo que o lubrifique e, ao volante, um motorista que perceba da arte sem atropelar o próximo. O pior é que nem sempre há estradas em condições.
Por vezes, até, as estradas não passam de estreitas veredas por onde as pobres povoações rurais têm de canalizar o seu tráfego. É triste, mas é assim mesmo. Todavia, a perseverança das povoações que querem uma estrada, a comparticipação do Estado e o dinheirinho apurado em subscrições - vão resolvendo lentamente problema. A rede de estradas aumenta e os queixumes, embora por forma morosa, vão amortecendo...
 Um dos concelhos mais queixosos, é o de Góis. Faltam-lhe muitas estradas. A freguesia do Colmeal que o diga - e nós também, sempre recordando as duas caminhadas que fizemos: Rolão -Colmeal e Colmeal – Celavisa, Alvares igualmente carece de vias de comunicação e Cadafaz...
A propósito de Cadafaz...
Por "A Comarca de Arganil", de sexta-feira passada, ontem chegada a esta cidade, tomámos conhecimento da ida a essa povoação, sede de freguesia, de um automóvel. Proeza digna de registo, visto Cadafaz não ter ainda a "sua” estrada, espevitou em nós a curiosidade jornalística, fazendo-nos lembrar aquelas perigosas travessias por caminhos nunca dantes "navegados" que deram brado em toda a região arganilense e que conferiram ao Romão Jorge - um belo rapaz que estaria hoje milionário se o infatigável Ford o tivesse encontrado na sua vida - o título de Herói das Serras.
E para saber como a ida ao Cadafaz se tinha realizado, em notas mais completas a adicionar ao relato do solicito correspondente de “A Comarca de Arganil" naquela povoação, telefonámos para a Faculdade de Ciências em demanda do Cláudio dos Santos, amigo velho - ele não gosta que lhe chamem velho... - que preside à Liga de Melhoramentos da Freguesia do Cadafaz, e que se pode orgulhar de pertencer ao número das primeiras pessoas que descobriram o Cadafaz... de automóvel.
 Um "ultimatum", pois não queríamos perder a oportunidade. Cláudio dos Santos estaria no Rossio, no mais "gelado de todos os cafés, às 18 horas.
Assim foi. O velho amigo - velho... velho... é como que diz! - não faltou. E na sua companhia trouxe outro cadafazense dedicado à sua terra o também amigo sr. Manuel Martins dos Santos. Cerveja, tremoços, amendoins e a conversação inicia-se.
– Sempre é certo ter ido ao Cadafaz de automóvel numa excursão?
– Excursão, não. Tratou-se de simples passeio, motivado pela justa homenagem, em Góis, ao sr. dr. Rui Ramos. Depois é que fomos ao Cadafaz, de automóvel mas passeando...
 – Quem foi que se deslocou até lá?
 –  Manuel Martins dos Santos e Ernesto Henriques Nunes e respectivas esposas, D. Angelina Martins dos Santos e D. Maria Antónia Henriques Nunes, a pequenina Maria Alice e eu.
Ao todo seis pessoas...
– Como nasceu essa ideia?
Cláudio dos Santos, enquanto faculta a fotografia - do automóvel junto à capelinha de Santo António, em pleno Cadafaz, que acompanha estas considerações – diz-nos:
Ao último almoço da Liga assistiu, como aliás tem sempre acontecido, o amigo Manuel Braz das Neves, que embora não seja da região, é um grande amigo dos cadafazenses. Possui um carro de 7 lugares que sabe guiar com muita perícia. À saída do restaurante onde o almoço se efectuou, o Manuel Martins dos Santos, aqui presente, fez a apologia de um vinhinho precioso nectar, que tem no Cadafaz, no seu "cartôlo". Logo se ofereceram vários "beneméritos" para o ir provar tão depressa se oferecesse o ensejo. E para remate da descrição, ficou mais ou menos assente que fosse o Braz, com o seu carro, quem conduzisse os sequiosos ao enaltecido "cartôlo”... Mudou-se de conversa e o assunto ficou de remissa para ser apreciado oportunamente.
Manuel Martins dos Santos confirma, Cláudio refresca a guela e nós tasquinhamos um tremoço. Para diante...
– Há poucas semanas ventilou-se a necessidade de alguém da Direcção da Liga, ir ao Cadafaz tratar de assuntos de interesse para a freguesia. Martins dos Santos voltou a recordar o "cartôlo", fazendo ver que não receava o assalto... E a esposa deste amigo teve até esta observação bem a propósito: “Se vocês fossem amigos da terra como dizem e teem provado, mandavam arranjar a "estrada" da serra e iam até ao Cadafaz de... automóvel”. Estas palavras tiveram o condão de provocar entusiasmo. Passados dias seguia uma carta para um amigo residente no Cadafaz, pedindo-lhe para ele mandar reparar tanto quanto possível, a "estrada"...
 – Foi boa a viagem?
– Não tenha pressa... Tendo adoecido o Manuel Braz das Neves, com uma dór ciática, não foi possível ele sair de Lisboa. Teve de ficar, deveras pezaroso, na capital. Fomos, então, no carro do Ernesto Henriques Nunes, atendendo a que não podíamos adiar a viagem por causa - repito - da justíssima homenagem ao sr. dr. Rui Ramos. Isso motivou a retenção, em Lisboa, de várias pessoas que teriam seguido se fôssem dois carros em vez de um...
“A viagem foi esplêndida, apesar de ter começado mal. Gastámos três horas até Vila Franca de Xira, devido a "panne” que tivemos de remediar na estrada. Mas depois, é que foi “dar-lhe”! de Vila Franca a Góis gastámos apenas cinco horas e um quarto. O carro parecia um avião... sem asas!
– Chegaram atrasados ao jantar em homenagem ao actual presidente da câmara municipal da Figueira da Foz?
– Um pouco fora da hora marcada. Mas os assistentes, uns 60, de diversas categorias sociais, sacrificando um pouco o apetite, aguardaram a nossa chegada, gentileza que à Liga de Melhoramentos da Freguesia do Cadafaz lhes fica devendo, pelo que nos dizia respeito, tínhamos enorme empenho em assistir a essa homenagem ao dr. Rui pela muita consideração que a sua ex.ª nos merece
– Ainda seguiram para o Cadafaz nêsse dia?
– Não. Depois do jantar fomos visitar o Castelo, o encanto de todos os goienses, de facto merecedor das referências elogiosas que lhe tem feito o amigo "Gustavo" autor das admiráveis "Crónicas de Góis" em publicação em "A Comarca". A seguir fomos a Bordeiro, no automóvel do amigo Manuel Francisco Martins, fazendo uma visita à adega de seu sobrinho e nosso amigo sr. Manuel Carneiro e… “toca a bater em retirada” para Góis. Na manhã seguinte era necessário levantar cedo. O Cadafaz esperava-nos!
– Porque a extrema amabilidade da família de Manuel Francisco Martins não no-lo permitiu e ainda porque a chegada a Cadafaz, de noite, podia provocar... alteração de ordem pública!
– A que horas saíram de Góis?
– No 21,ás 8...
– E quando chegaram ao Cadafaz?
– Três horas depois...
– Então, de Góis ao Cadafaz o percurso é tão demorado?
– Não! Pela estrada são uns 10 quilómetros. Mas logo acima da Portela de Góis suportámos uma "panne". A estrada da Pampilhosa - 40-2 não está para correrias. Na Selada do Braçal largámos a estrada e depois... depois ... foram uns cinco quilómetros de aflições, sempre com o Credo na bôca! Se não fosse a coragem, perícia e sangue frio do motorista, o amigo Ernesto e nós teríamos conseguido um bonito funeral!...
– Uma aventura...
– Sim, mas sem ser amorosa!
– Mas não tinham mandado arranjar o “caminho”?
– Sim, mandámos. E o encarregado dos trabalhos e o pessoal neles empregado, fizeram muito em pouco tempo, mostrando bem o desejo que tinham em ver o automóvel rodando na terra do Cadafaz, até agora, em locomoção, só sentindo o pêso dos carros de bois... Mas como é natural, a "estrada" ficou estreita e descer duma serra para um baixo é tarefa arrojada. Só lhe digo isto: Houve sítios em que se o carro tivesse um desvio de dez centímetros nem a alma se nos aproveitava. E com a agravante de não levarmos pára-quedas!
– Como foram recebidos no Cadafaz?
– Um verdadeiro delírio! Foguetes, morteiros, abraços, lágrimas de alegria!
– Quantos dias se conservaram no Cadafaz?
– Seis dias que pareceram seis horas, com exposição permanente do carro aos mais incrédulos, que não queriam crer no "fenómeno". Na tarde da chegada houve um baile popular que esteve animadíssimo.
– Uma autêntica viagem de recreio...
– Só em parte. Porque também aproveitámos muito tempo a tratar de assuntos que dizem respeito à Liga e à Freguesia.
– Quando saíram do Cadafaz?
– Matinalmente, às 8 horas do dia 20.
– Porque não fizeram a jornada pelo caminho vicinal que andam construindo?
– Isso seria o ideal, mas os trabalhos ainda estão longe do Cadafaz. Está-se a concluir o primeiro lanço, perto de dois quilómetros, tendo-se pedido a assistência técnica para o segundo, que é de cinco quilómetros.
– Não foram visitar essas obras?
– Seria um erro imperdoável não fazer. Fomos e viemos satisfeitos com o que vimos.
– Quando chegaram a Lisboa?
– No dia 21, às 19 horas.
– Nesse caso dormiram pelo caminho?...
– Efectivamente, assim, é. Em Leiria ficámos em casa do distinto amigo sr. dr. Alberto Baeta da Veiga, que, não obstante ter a sua família em Góis, não se poupou a canseiras para nos rodear de comodidades.
– Não tiveram outras paragens durante a viagem?
– Visitámos em Cela o nosso conterrâneo e amigo, sr. João Martins Carneiro, que nos recebeu com galhardia. Tanto ele como sua esposa foram amabilíssimos. Perto das Caldas da Rainha retrocedemos para ir ao Sobral visitar a família da esposa do Ernesto Henriques Nunes. Igualmente nos cercaram das maiores atenções.
– Quando pensam efectuar outro passeio?
– O mais depressa possível. Mas então, não irá um só automóvel mas sim vários carros. Uma excursão, uma autêntica excursão!
– O que convém, nêsse caso, é melhorar a "estrada”...
– Claro! E desde já posso dizer que os naturais do Cadafaz ficaram tão entusiasmados que já ofereceram dias de trabalho para que a "estrada" fique em condições de lá passar um camião em vez de um automóvel. Confiança no futuro não falta!
Opera-se a dispersão. Manuel Martins dos Santos e Cláudio dos Santos, ainda ficam no café. Nós retiramo-nos apressados, porque já nos esperam em outro ponto. E fixamos esta frase final, do amigo Cláudio, que é bem, na sua singeleza, um programa de realizações, uma determinação imperativa:
– A Liga de Melhoramentos da Freguesia do Cadafaz não descansará na sua faina, em tudo que diz respeito a vias de comunicação, enquanto tôdas as povoações não estiverem servidas. Cumpre o seu dever não as desamparando.
LUIZ FERREIRA.

in A Comarca de Arganil de 2 de setembro de 1938



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Paula Santa Cruz