O texto relata a ida do primeiro
automóvel ao Cadafaz, que aconteceu em 1938.
Foi um dia marcante, de delírio e festa
para as gentes do Cadafaz dessa altura.
Leiam com atenção a epopeia que viveram
nessa altura, de certeza que irão gostar.
UMA
VIAGEM ARRISCADA
Ida e volta ao Cadafaz, de automóvel, por terras nunca
dantes "navegadas",… - O relatório da jornada - que foi feita sem
seguro de vida!
Lisboa, 28 – Desde
que haja estradas em condições, um automóvel vai a todo o lado. Basta para isso
que tenha rodas para andar, gasolina no motor, óleo que o lubrifique e, ao
volante, um motorista que perceba da arte sem atropelar o próximo. O pior é que
nem sempre há estradas em condições.
Por vezes, até, as
estradas não passam de estreitas veredas por onde as pobres povoações rurais
têm de canalizar o seu tráfego. É triste, mas é assim mesmo. Todavia, a
perseverança das povoações que querem uma estrada, a comparticipação do Estado
e o dinheirinho apurado em subscrições - vão resolvendo lentamente problema. A
rede de estradas aumenta e os queixumes, embora por forma morosa, vão
amortecendo...
Um dos concelhos mais queixosos, é o de Góis.
Faltam-lhe muitas estradas. A freguesia do Colmeal que o diga - e nós também,
sempre recordando as duas caminhadas que fizemos: Rolão -Colmeal e Colmeal – Celavisa,
Alvares igualmente carece de vias de comunicação e Cadafaz...
A propósito de Cadafaz...
Por "A Comarca
de Arganil", de sexta-feira passada, ontem chegada a esta cidade, tomámos
conhecimento da ida a essa povoação, sede de freguesia, de um automóvel. Proeza
digna de registo, visto Cadafaz não ter ainda a "sua” estrada, espevitou
em nós a curiosidade jornalística, fazendo-nos lembrar aquelas perigosas
travessias por caminhos nunca dantes "navegados" que deram brado em
toda a região arganilense e que conferiram ao Romão Jorge - um belo rapaz que
estaria hoje milionário se o infatigável Ford o tivesse encontrado na sua vida -
o título de Herói das Serras.
E para saber como a ida
ao Cadafaz se tinha realizado, em notas mais completas a adicionar ao relato do
solicito correspondente de “A Comarca de Arganil" naquela povoação,
telefonámos para a Faculdade de Ciências em demanda do Cláudio dos Santos,
amigo velho - ele não gosta que lhe chamem velho... - que preside à Liga de
Melhoramentos da Freguesia do Cadafaz, e que se pode orgulhar de pertencer ao
número das primeiras pessoas que descobriram o Cadafaz... de automóvel.
Um "ultimatum", pois não queríamos
perder a oportunidade. Cláudio dos Santos estaria no Rossio, no mais
"gelado de todos os cafés, às 18 horas.
Assim foi. O velho amigo
- velho... velho... é como que diz! - não faltou. E na sua companhia trouxe
outro cadafazense dedicado à sua terra o também amigo sr. Manuel Martins dos
Santos. Cerveja, tremoços, amendoins e a conversação inicia-se.
– Sempre é certo ter
ido ao Cadafaz de automóvel numa excursão?
– Excursão, não.
Tratou-se de simples passeio, motivado pela justa homenagem, em Góis, ao sr.
dr. Rui Ramos. Depois é que fomos ao Cadafaz, de automóvel mas passeando...
– Quem foi que se deslocou até lá?
– Manuel Martins dos Santos e Ernesto Henriques
Nunes e respectivas esposas, D. Angelina Martins dos Santos e D. Maria Antónia
Henriques Nunes, a pequenina Maria Alice e eu.
Ao todo seis
pessoas...
– Como nasceu essa
ideia?
Cláudio dos Santos,
enquanto faculta a fotografia - do automóvel junto à capelinha de Santo
António, em pleno Cadafaz, que acompanha estas considerações – diz-nos:
Ao último almoço da
Liga assistiu, como aliás tem sempre acontecido, o amigo Manuel Braz das Neves,
que embora não seja da região, é um grande amigo dos cadafazenses. Possui um
carro de 7 lugares que sabe guiar com muita perícia. À saída do restaurante
onde o almoço se efectuou, o Manuel Martins dos Santos, aqui presente, fez a
apologia de um vinhinho precioso nectar, que tem no Cadafaz, no seu
"cartôlo". Logo se ofereceram vários "beneméritos" para o
ir provar tão depressa se oferecesse o ensejo. E para remate da descrição,
ficou mais ou menos assente que fosse o Braz, com o seu carro, quem conduzisse
os sequiosos ao enaltecido "cartôlo”... Mudou-se de conversa e o assunto
ficou de remissa para ser apreciado oportunamente.
Manuel Martins dos
Santos confirma, Cláudio refresca a guela e nós tasquinhamos um tremoço. Para
diante...
– Há poucas semanas
ventilou-se a necessidade de alguém da Direcção da Liga, ir ao Cadafaz tratar
de assuntos de interesse para a freguesia. Martins dos Santos voltou a recordar
o "cartôlo", fazendo ver que não receava o assalto... E a esposa
deste amigo teve até esta observação bem a propósito: “Se vocês fossem amigos
da terra como dizem e teem provado, mandavam arranjar a "estrada" da
serra e iam até ao Cadafaz de... automóvel”. Estas palavras tiveram o condão de
provocar entusiasmo. Passados dias seguia uma carta para um amigo residente no
Cadafaz, pedindo-lhe para ele mandar reparar tanto quanto possível, a
"estrada"...
– Foi boa a viagem?
– Não tenha pressa...
Tendo adoecido o Manuel Braz das Neves, com uma dór ciática, não foi possível
ele sair de Lisboa. Teve de ficar, deveras pezaroso, na capital. Fomos, então,
no carro do Ernesto Henriques Nunes, atendendo a que não podíamos adiar a
viagem por causa - repito - da justíssima homenagem ao sr. dr. Rui Ramos. Isso
motivou a retenção, em Lisboa, de várias pessoas que teriam seguido se fôssem
dois carros em vez de um...
“A viagem foi
esplêndida, apesar de ter começado mal. Gastámos três horas até Vila Franca de
Xira, devido a "panne” que tivemos de remediar na estrada. Mas depois, é
que foi “dar-lhe”! de Vila Franca a Góis gastámos apenas cinco horas e um
quarto. O carro parecia um avião... sem asas!
– Chegaram atrasados
ao jantar em homenagem ao actual presidente da câmara municipal da Figueira da
Foz?
– Um pouco fora da
hora marcada. Mas os assistentes, uns 60, de diversas categorias sociais,
sacrificando um pouco o apetite, aguardaram a nossa chegada, gentileza que à
Liga de Melhoramentos da Freguesia do Cadafaz lhes fica devendo, pelo que nos
dizia respeito, tínhamos enorme empenho em assistir a essa homenagem ao dr. Rui
pela muita consideração que a sua ex.ª nos merece
– Ainda seguiram para
o Cadafaz nêsse dia?
– Não. Depois do
jantar fomos visitar o Castelo, o encanto de todos os goienses, de facto
merecedor das referências elogiosas que lhe tem feito o amigo
"Gustavo" autor das admiráveis "Crónicas de Góis" em
publicação em "A Comarca". A seguir fomos a Bordeiro, no automóvel do
amigo Manuel Francisco Martins, fazendo uma visita à adega de seu sobrinho e
nosso amigo sr. Manuel Carneiro e… “toca a bater em retirada” para Góis. Na
manhã seguinte era necessário levantar cedo. O Cadafaz esperava-nos!
– Porque a extrema
amabilidade da família de Manuel Francisco Martins não no-lo permitiu e ainda
porque a chegada a Cadafaz, de noite, podia provocar... alteração de ordem
pública!
– A que horas saíram
de Góis?
– No 21,ás 8...
– E quando chegaram
ao Cadafaz?
– Três horas depois...
– Então, de Góis ao
Cadafaz o percurso é tão demorado?
– Não! Pela estrada
são uns 10 quilómetros. Mas logo acima da Portela de Góis suportámos uma
"panne". A estrada da Pampilhosa - 40-2 não está para correrias. Na
Selada do Braçal largámos a estrada e depois... depois ... foram uns cinco
quilómetros de aflições, sempre com o Credo na bôca! Se não fosse a coragem,
perícia e sangue frio do motorista, o amigo Ernesto e nós teríamos conseguido
um bonito funeral!...
– Uma aventura...
– Sim, mas sem ser
amorosa!
– Mas não tinham
mandado arranjar o “caminho”?
– Sim, mandámos. E o
encarregado dos trabalhos e o pessoal neles empregado, fizeram muito em pouco
tempo, mostrando bem o desejo que tinham em ver o automóvel rodando na terra do
Cadafaz, até agora, em locomoção, só sentindo o pêso dos carros de bois... Mas
como é natural, a "estrada" ficou estreita e descer duma serra para
um baixo é tarefa arrojada. Só lhe digo isto: Houve sítios em que se o carro
tivesse um desvio de dez centímetros nem a alma se nos aproveitava. E com a
agravante de não levarmos pára-quedas!
– Como foram
recebidos no Cadafaz?
– Um verdadeiro
delírio! Foguetes, morteiros, abraços, lágrimas de alegria!
– Quantos dias se
conservaram no Cadafaz?
– Seis dias que
pareceram seis horas, com exposição permanente do carro aos mais incrédulos,
que não queriam crer no "fenómeno". Na tarde da chegada houve um
baile popular que esteve animadíssimo.
– Uma autêntica
viagem de recreio...
– Só em parte. Porque
também aproveitámos muito tempo a tratar de assuntos que dizem respeito à Liga
e à Freguesia.
– Quando saíram do
Cadafaz?
– Matinalmente, às 8
horas do dia 20.
– Porque não fizeram
a jornada pelo caminho vicinal que andam construindo?
– Isso seria o ideal,
mas os trabalhos ainda estão longe do Cadafaz. Está-se a concluir o primeiro
lanço, perto de dois quilómetros, tendo-se pedido a assistência técnica para o
segundo, que é de cinco quilómetros.
– Não foram visitar
essas obras?
– Seria um erro
imperdoável não fazer. Fomos e viemos satisfeitos com o que vimos.
– Quando chegaram a
Lisboa?
– No dia 21, às 19
horas.
– Nesse caso dormiram
pelo caminho?...
– Efectivamente,
assim, é. Em Leiria ficámos em casa do distinto amigo sr. dr. Alberto Baeta da
Veiga, que, não obstante ter a sua família em Góis, não se poupou a canseiras
para nos rodear de comodidades.
– Não tiveram outras
paragens durante a viagem?
– Visitámos em Cela o
nosso conterrâneo e amigo, sr. João Martins Carneiro, que nos recebeu com
galhardia. Tanto ele como sua esposa foram amabilíssimos. Perto das Caldas da
Rainha retrocedemos para ir ao Sobral visitar a família da esposa do Ernesto
Henriques Nunes. Igualmente nos cercaram das maiores atenções.
– Quando pensam efectuar
outro passeio?
– O mais depressa
possível. Mas então, não irá um só automóvel mas sim vários carros. Uma
excursão, uma autêntica excursão!
– O que convém, nêsse
caso, é melhorar a "estrada”...
– Claro! E desde já
posso dizer que os naturais do Cadafaz ficaram tão entusiasmados que já
ofereceram dias de trabalho para que a "estrada" fique em condições
de lá passar um camião em vez de um automóvel. Confiança no futuro não falta!
Opera-se a dispersão.
Manuel Martins dos Santos e Cláudio dos Santos, ainda ficam no café. Nós
retiramo-nos apressados, porque já nos esperam em outro ponto. E fixamos esta
frase final, do amigo Cláudio, que é bem, na sua singeleza, um programa de
realizações, uma determinação imperativa:
– A Liga de Melhoramentos
da Freguesia do Cadafaz não descansará na sua faina, em tudo que diz respeito a
vias de comunicação, enquanto tôdas as povoações não estiverem servidas. Cumpre
o seu dever não as desamparando.
LUIZ FERREIRA.
in
A Comarca de Arganil de 2 de setembro
de 1938
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Paula Santa Cruz